domingo, fevereiro 05, 2006

“O Idiota Supremo”

Não raras vezes, lemos um livro que nos foi indicado ou mesmo “impingido” por uma qualquer “autoridade superior”. Deparamos, posteriormente, com obras vazias de um conteúdo significativo. A história da literatura muitas vezes sofreu com esta espécie de “forcing” em transformar obras e escritores razoáveis (ou mesmo medíocres) em vultos literários.
No entanto, existem também casos, em que o valor literário e histórico de uma obra é verdadeiramente incontestável. Poderia mesmo citar acerca deste ponto obras como “Os Maias” ou ainda um fabuloso “Hamlet” de Shakespeare.
Nesta minha apreciação vou-me debruçar sobre aquela que considero uma das mais proeminentes obras da literatura europeia: “O Idiota” de Fiódor Dostoiévski.
O “Idiota”, que nos é apresentado pelo escritor russo, simboliza, na minha opinião, não só o mais puro e sofredor dos corações humanos, mas simultaneamente a mais nobre e virtuosa atitude do Homem. Atrevo-me mesmo a dizer que um leitor que interiorize, gradualmente, a obra, se sente a dado momento como que um amigo de Lev Nikoláevitch.
Este príncipe vai mais além do Artur Corvelo “pintado” por Eça. Este Príncipe Míchkin representa toda a ingenuidade, todo o valor e toda a força que um homem pode usar em prol das outras pessoas. Dostoiévski não se limita a apresentar um príncipe simplesmente ”idiota”. O escritor coloca este mesmo “idiota” no mais nobre dos cenários russos onde, as figuras exultantes da alta sociedade, se deliciam com a sua “estupidez” perante pontos de vista que qualquer leitor sensível identifica como demasiado profundos e vanguardistas para a época. Pese embora isso, esses pensamentos baseiam-se sempre numa base sólida que nos faz repensar as nossas simples vidas de cidadãos do mundo desenvolvido em pleno século XXI (atente-se que, o livro foi escrito no final do século XIX, numa altura em que a Rússia se agitava com graves problemas sociais e económicos).
Concluo, não querendo cair na tentação de espelhar neste artigo os traços gerais da obra (o que de resto, seria impossível), que este “O Idiota” é, a meu ver, uma das mais importantes obras existencialistas de todo o tempo. Não um existencialismo explícito, mas um existencialismo subtil. Dêem-me a ousadia de afirmar que: o mundo seria bem melhor, se todos nós conseguíssemos igualar os nossos corações ao de Lev Nikoláevitch, não tendo medo de ser bons, mesmo que para isso sejamos para sempre e inevitavelmente apelidados de: “O Idiota”.

P.S: Deixemo-nos então influênciar por um bom livro porque, como referiu Marguerite Yourcenar (e nos lembra o programa "páginas soltas" numa citação da escritora) : "A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana."

P.R.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

O carácter existencialista que extrais do “Idiota” provém de um maniqueismo latente nesta obra. O eterno e sempre confuso combate entre o Bem (Príncipe Michkin) e o Mal (Rogójin) retrata bem o quanto a linha que os separa pode ser ténue: Ambos começam e acabam a estória juntos, como se as suas existências dependessem, de alguma forma, uma da outra.
A referência que fazes a Shakespeare é curiosa porque a envolvente trágica que emana da personangem central aproxima umbilicalmente o autor russo de outras personagens centrais do dramaturgo inglês(como o referido Hamlet).
Lev Nikoláevitch (O Príncipe) é o carro de combate santificado pelo russo na luta contra o ateísmo. Dostoiévski apresenta-nos alguém que veste um “quixotismo” desarmante na forma como acredita cegamente na bondade daqueles que o rodeiam, tal como o “engenhoso fidalgo” cria e seguia as quimeras dos livros de cavalaria andante. Por outro lado, a pureza genuína que nunca o abandona ao longo desta obra leva-o a tomar actos de vontade própria isolados (porque raramente os tem) ao sentir-se tocado por uma compaixão “divina” por aqueles que representam a dor (Nastassia Filippovna).
Assim, o Idiota pode significar uma vitória interior para aqueles que analisarem este rótulo de uma forma sequencial:
O Mal só pode vencer o Bem numa perspectiva exterior, onde as sociedades apregoam a vitória das aparências. Sendo o homem uno, inigualável e inatingível na sua reflexão interior, é na luta interior que o “Idiota exterior” passa a homem virtuoso e vence.
Neste sentido, Dostoiévski parece chamar “Idiota” ao leitor que não conseguir encontrar essa virtude dentro de si. No fundo, a todos aqueles que perdem a sua batalha interior.

6:20 da tarde, fevereiro 06, 2006  
Anonymous Anónimo said...

hmm... gostei muito de ler o texto e a critica; livro que TENHO "indubitavelmente" de ler! (Ai que bom voltar a usar palavras caras em portugues - "indubitavelmente": palavra essa que foi a minha primeira usada na faculdade!=P) ehehe .. Grande abraço pour vous!

6:41 da tarde, fevereiro 07, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Bom texto. Todo eu estremeci com tao sabias e maduras palavras! Este texto merece o meu aplauso e os mais rasgados elogios.

Parabens (este teclado nao contempla a lingua portuguesa, como tal, estou impossibilitado de usar acentos, enfim, americanices!), tambem, ao meu caro R.C. que conseguiu escrever um comentario quase tao grande como o texto original! (desculpa, eu tinha que me meter contigo)

Para o Sr. P.M., como ves nem sempre falo mal dos vossos textos!! :)

12:41 da manhã, fevereiro 11, 2006  

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