segunda-feira, janeiro 23, 2006

Cavaco

Ao votarem em Cavaco Silva para Presidente da República, os portugueses assinaram um novo capítulo na História de Portugal. Ao fim de 95 anos e 17 presidentes representantes da esquerda, Cavaco Silva assume-se como o 1º Presidente da República de Portugal ligado à área política da direita.
Neste momento de viragem histórica na política do país, importa reflectir um pouco sobre o homem que vai presidir ao mais alto cargo da hierarquia política nacional nos próximos 5 anos.
Cavaco esperou muito por este momento, por muito que o negue. A derrota para Sampaio nas presidenciais de 1996 ficou encravada na sua garganta de economista. Quis ter a certeza de que venceria porque sabe que tem algo de especial que mexe com o povo, um dom pouco visível mas que o distingue dos outros de um modo surpreendente e incompreensivelmente visível.
Não é um homem que atraia pela oratória. É tímido, reservado, não convence pelo argumento persuasivo. Não tem alma de político.
E é precisamente por não ter alma de político que Cavaco é a melhor opção para substituir Jorge Sampaio no Palácio de Belém. Não lhe corre no sangue o rio do espectáculo mediático, esse vírus que se alastra com uma facilidade devastadora pelo interior dos políticos e que este algarvio nascido em Boliqueime, de facto, nunca teve nem conseguiu ter.
O que Cavaco tem é um espírito humilde, um sentido de responsabilidade e seriedade necessárias para mergulhar nos seu ofícios com a certeza de que o seu trabalho deve ser realizado com o maior respeito pelos outros e por si. A forma como nunca ripostou aos ataques pessoais de Mário Soares durante a campanha eleitoral são prova evidente disso mesmo.
Fez indiscutivelmente o seu trabalho, limitou-se a defender as suas ideias (concorde-se com elas ou não).
É certo que a sua imagem de homem distante e frio pode afastar as pessoas. Mas o que neste momento Portugal precisa é de um homem que siga a linha de trabalho realizada por Jorge Sampaio no que diz respeito à visão da estabilidade necessária ao exercício produtivo do governo, mas que acrescente algo no sector emocional das pessoas, directamente relacionado com a questão da confiança.
Desfazendo o paradoxo atrás evidenciado, o mito sebastianista umbilicalmente ligado a Cavaco Silva (desde o seu afastamento da política após as presidenciais de 1996), acaba por ter um efeito positivo junto das pessoas.
Os poderes presidenciais previstos na Constituição portuguesa são claros e curtos no seu raio de acção, Cavaco sabe disso. No entanto o respeito que essa imagem sebastiânica lhe confere no que toca ao que os portugueses pensam dele, é uma ferramenta que este pode utilizar no sentido de criar o tão desejado clima de confiança favorável ao investimento público e privado, de modo a que a economia portuguesa seja mais competitiva. Só assim, descansando sobre uma almofada económica confortável, o actual governo socialista poderá desenvolver o conjunto de políticas sociais que melhore o nível de vida dos portugueses, ao invés de o degradar a cada semana que passa.
As mudanças, de um modo geral, têm o condão de agitar o que está calmo e promover reacções no interior das pessoas, que terão reflexos no seu contexto exterior.
A mudança pioneira da Presidência da República Portuguesa da esquerda para a direita é a prova de que Cavaco Silva tem um capital de confiança considerável junto dos portugueses: os resultados da noite passada comprovam-no. No entanto, só o futuro poderá dizer se este economista de 66 anos tem mesmo o que é preciso para que Portugal consiga, finalmente, crescer dentro das suas capacidades. Isto significa afastar dos centros de decisão as tendências megalómanas que são parte considerável do veneno que corrói a nação portuguesa.

P.S – Uma palavra de registo para Manuel Alegre. Sem apoios partidários e concorrendo contra a filiação oficial do PS no apoio a Mário Soares, o deputado e poeta socialista averbou um resultado impressionante. Ao deixar Soares tão distante no 3º lugar e, sendo o único candidato responsável pela dúvida que pairou no ar durante algumas horas face à realização ou não de uma 2ª volta, Alegre viu recompensada a sua coragem e transparência reveladas durante a campanha eleitoral.
A inexperiência que o caracteriza no que diz respeito ao desempenho de cargos importantes da hierarquia política, a par de concorrer com um “vencedor previamente anunciado”, terão impedido o respeitoso e digno Manuel Alegre de levar os seus poemas para Belém.

R.C.