terça-feira, março 21, 2006

Quem anda à chuva em Lisboa, afoga-se!

Rui Coelho é acordado com o terno sopro de um berbequim às 8h30. Tal melodia penetrava nos seus ouvidos a uma velocidade considerável e, por sinal, parecia estar a ser transmitida directamente de uma emissora vizinha ao seu apartamento.
Depois de abrir a porta e vomitar um impropério rumo a quem quer que estivesse a compôr tal música, desiste de dormir e vai despachar-se, tranquilamente. A faculdade aguarda-o para mais uma manhã de estudo católico.
Dirige-se bem disposto em direcção ao metro e a música daquele berbequim já está colada aos seus tímpanos. Como é hábito não compra bilhete, as estações exigidas pelo trajecto diariamente percorrido têm as portas abertas.
Arroios, Campo Grande, Cidade Universitária, o trio liberal.
Como de costume já se encontra atrasado e, ao descer no Campo Grande, desliza pelas escadas num slalom formidável, ludibriando pessoas de todos os estratos sociais.O próximo comboio ja uiva ao longe, Rui tem os olhos no chão e os seus ouvidos fazem amor com a cera.
No entanto, ao dobrar a esquina das ditas escadas qual Forrest Gump, tudo muda.

Rui Coelho depara-se com...
347838047098419028489023983192810283910283190290 fiscais do metro. "Picas", na gíria.
Pedem o seu passe (não tem passe) e é então que o jovem algarvio sai-se com a frase mais extraordinária que alguém poderá lembrar-se de dizer numa situação destas:
"Agora não posso." E foge.
A resposta dos responsáveis pela segurança financeira do metro de Lisboa foi imediata e cirúrgica. Qual operação Barbarossa, estes homens com a coluna vertical hirta (homens de família, pais de filhos) trocam sinais, códigos verbais e a tampa salta.
Ele há snipers vestidos de azul, vermelho e branco (moda ultrapassada, diga-se) a surgir por todos os cantos, ouvem-se helicópteros (não se ouvem nada) e não demorou muito até o facínora Rui Coelho, no seu ritmo Susana Feitor, sentir-se agarrado com veemência por braços tonificados (não confundir com doping, falamos de pessoas íntegras) de cólera profissional, já no acesso às escadas que sobem para uma daquelas linhas ferroviárias.
Rui procura o seu passe (relembro que não o tem) e, passados 5 longos e extremamente confiantes minutos de busca pelo mesmo, o rapaz profere mais uma pérola digna de figurar nos anais da História registada da capital portuguesa:
"Não tenho passe."
O final acaba por ser feliz, como deve ser toda e qualquer história que se preze.
Dos 50 euros previstos como multa a pagar em situações “normais de esquecimento”, o preço é puxado (gentilmente) até uns irrisórios 13 000$ que deixarão o aluno da Universidade Católica Portuguesa, pólo de Palma de Cima - Lisboa (ufff...) a pão e água no par de semanas que nos aguarda.
Tamanho desenlace, logicamente, apenas terá sido possível devido à misericórdia daqueles chefes de família, pais de filhos, cujo sentido de ofício nos enche de orgulho.
Afinal, vale a pena encarar o futuro desta nação com outros olhos. Olhos verdes, de esperança.

P.S.: Consta que Rui Coelho, pela hora em que este texto estava a ser concluído (01h42), dirigia-se rumo à cozinha do seu apartamento em Arroios para comer um pão.

R.C.

segunda-feira, março 13, 2006

Óscares 2006 - Duas perspectivas

O liberalismo de Hollywood

Por detrás de um grande filme está uma grande banda sonora. Cada vez defendo mais esta teoria e que Gustavo Santaolalla permaneça no activo por muitos e melódicos anos para poder assiná-la por baixo com a sua música fascinante.
Depois de de Amor Cão, 21 gramas ou Diários de Che Guevara, este argentino de 54 anos vê finalmente reconhecido o seu trabalho em Hollywood ao receber o óscar de melhor banda sonora pelo seu trabalho adoravelmente repetitivo em Brokeback Mountain.
A 78ª edição da entrega dos Óscares de Hollywood ofereceu, ao contrário do que muitos apregoam, várias surpresas: Desde logo, o aclamado Brokeback Mountain venceu apenas 3 dos 8 óscares para que foi nomeado. Depois porque, desses 3, apenas o de melhor realizador teve o impacto oscarizado que a obra poética de Ang Lee fazia antever.
Por fim, porque o prémio de melhor filme foi entregue a Crash, a obra-prima de Paul Haggis (Produtor de Million Dollar Baby) que conta a história dramática do quotidiano de Los Angeles, onde o racismo e a intolerância como resultado da diversidade étnica e racial característica da cidade dos anjos constituem o prato forte.
No entanto, o evento que mais me surpreendeu na noite de domingo passado diz respeito ao vinho que rega Crash.
Transpondo o espírito do novo-rico para o novo-amigo, a academia de Hollywood aprimorou a sua faceta liberal e resolveu aderir ao comboio do hip-hop, premiando “It`s hard out there for a pimp”, do filme Hustle and Flow, com a estatueta referente à melhor música original.
Ora se compararmos esta cerveja sem álcool ao vinho do Porto servido por Bird York no seu “In the Deep”, é forçoso reconhecer o ridículo que as gargalhadas (ingloriamente combatidas) do apresentador Jon Stewart (nota máxima na sua estreia) anunciaram após a entrega do dito prémio.
No fim da festa importa reconhecer que o ano cinematográfico de 2005 foi de enorme qualidade, prevalecendo a vitória do filme-mensagem sobre as grandes produções de Hollywood.
Apologia do respeito pelas diferenças sexuais, religiosas ou raciais; respeito pela liberdade de expressão ou o desmascarar dos efeitos colaterais necessários à sobrevivência do monstro capitalista; vários foram os filmes político-sociais premiados na edição 2006 dos óscares. Perdão, Óscares.

R.C.


“And the Oscar goes to…”

Foi da boca de Jack Nicholson que saíram as palavras que causaram a surpresa da noite. O melhor filme do ano acabou por ser, contra todas as expectativas, o drama alucinante de Paul Haggis.
Que me perdoem aqueles que apostavam nos “cowboys” de Ang Lee para ganhar a estatueta, mas “Crash” é um justo vencedor. Esta produção alternativa que nos remete para o mais profundo, conflituoso e paradoxal interior do ser-humano é, sem dúvidas, a escolha certa da Academia. “Crash” é um filme genial que mistura histórias complexas ao estilo de “21 Gramas” com a profundidade sentimental de “Million Dollar Baby” (a este aspecto não é alheio o facto de Paul Haggis, realizador do filme vencedor deste ano, ter sido o produtor do filme de Clint Eastwood).
Mas algo está a mudar no cinema e as nomeações para melhor filme foram a prova desse facto. Os “blockbusters” aprontam-se a deixar cada vez mais espaço para as produções alternativas como “Crash” e “Good Night and Good Luck”.
Saem como grandes vencedores da noite dos Óscares, não só “Crash" e Philip Seymour Hoffman (dono de uma das mais desconcertantes interpretações que o cinema já conheceu), mas também o cinema em si. A qualidade melhora a olhos vistos e esperemos que continue assim, em prol do cinema e em prol de uma melhor consciência crítica.

P.R.

sábado, março 04, 2006

The Island of Memoirs

Irlanda: Dublin, Belfast & Causeway Coast

Depois de ter sido apresentado aqui no Desvio do Pensamento o trabalho e os resultados a nível económico das políticas irlandesas (por R.C.), viajei até lá para espreitar um pouco da ilha. Da Irlanda em si, Dublin; da Irlanda do Norte, Belfast e a “so-called” Causeway Coast. E muito ainda há para descobrir naquela ilha.

Ao aterrar em Dublin, a primeira impressão é a de que vou estar não sei quantos dias numa ilha onde não consigo perceber três quartos do que eles dizem. O «Irish accent» aproxima-se, por vezes, do Chinês. Se peço indicações, percebo meio nome da rua que estava à procura; se peço uma Guinness, percebo metade do preço daquilo que realmente tenho que pagar. Se o «British» já pode ser tramado, o «Irish» é… Chinês. De Dublin só conheço os U2 e o Oscar Wilde quando aterro. Saio de lá apaixonado pelo bairro de Temple Bar – com todo aquele ar alternativo e de ter sempre uma boa exposição ou um bom concerto à porta; e com um certo apego ao valor que os irlandeses dão a um bom pub, uma boa Guinness e um bom concerto de música celta… Juntando o Trinity College, a National Gallery, a casa do Oscar Wilde, as várias caminhadas e uma vista de olhos pelo Book of Kells – e saio de Dublin com um sorriso pregado na boca, pronto para continuar a viagem.
Chego a Belfast e desiludo-me em três segundos. Cidade sem furor de beleza. Esburacada por novos investimentos por todo o lado e vestida pelo sem-fim de receio por mais bombas, assassínios ou raptos. Coração dos conflitos político-sociais dos chamados “troubles”, que desde 1969 assombram a parte Oeste da cidade, Belfast resiste optimista quanto ao futuro. Estampado na cara das pessoas estão dois componentes: um passado magoado e um convicto sabor a felicidade para o futuro. Misteriosa mistura que dá uma estranha vontade de enaltecer a cidade. O que me levou a Belfast não foi a sua arquitectura ou os seus monumentos (que em muito me surpreenderam), mas sim a curiosidade por aquela tensão criada pelos “troubles”; os murais protestantes e católicos; os sentimentos de quem vive num dos lados da fronteira criada por tão fortes divergências. E foi isso que vi. De Shankill Road – coração do bairro protestante – até ao bairro católico em Falls Road, senti a tensão, admirei a brutalidade dos murais e ouvi os sentimentos dos dois lados da fronteira. Dispersos ainda entre vinganças e ódios, estes sentimentos são assustadores pela sua magnitude – «Estás a ver esta cicatriz no meu pescoço? Foi a IRA há já uns anos atrás»; «Eu não sou irlandês! Sou inglês e fiel à Rainha! Protestante de gema, nascido e criado em Shankill Road»; «Estás a ver aquele carro ali a 50 metros? Há 4 meses explodiu ali uma bomba armadilhada num carro e eu estava aqui a fumar um cigarro» … A intensidade dos acontecimentos é já quase banalizada por todos, enquanto eu receio, da cabeça aos pés, pela minha permanência até já à noite nestes dois bairros, em muito, ameaçadores.
Parto então para a última etapa desta viagem: a visita à Causeway Coast – costa do topo norte da ilha, recortada por altíssimas falésias e uma natureza pura e sentida. Uma caminhada de 18 km pela costa de Ballintoy a Bushmills, passando pelo fenómeno natural, grandioso e parte do património da UNESCO – Giants Causeway – bastou para perceber a magnífica força da natureza irlandesa. Talvez da Irlanda mesmo em si, daquilo que sempre foi e que, esperemos, sempre será: «an island of memoirs» ... onde nos perdemos muito fundo em nós próprios.
“So peaceful and calmly this place it seems to be,
Yet I stare at it sadly for its thru a picture I see,
This land far, far away from mine
I watch the clock in patient time
For someday soon I’ll touch the sand
Of this calm place called Ireland.”
Chantal O’Connor
J.A.